Marcos inicia seu Evangelho com o anúncio de João Batista que vem “preparar o caminho” de Jesus. Agora, os discípulos de Cristo começam a “abrir caminho”. Marcos, na primeira parte de seu Evangelho, coloca a “casa” como o lugar de formação e convívio das comunidades envolvidas pelo ministério de Jesus. Na segunda parte, quando vai se encerrando o ministério ao redor da Galileia, o destaque é o “caminho” para Jerusalém, onde acontecerá o confronto final com os chefes do Templo.
Ao longo do ministério na Galileia e vizinhanças, fica caracterizado o confronto com os chefes das sinagogas locais pelas infrações às regras de pureza, pela observância sabática, pelo jejum e pelo convívio social, bem como pela promulgação do perdão dos pecados. Jesus, por sua prática, revela que a necessidade está acima da Lei.
O que Jesus e os discípulos estavam fazendo em Marcos 2,23 seria perfeitamente lícito aos olhos dos fariseus se não fosse realizado no sábado (Deuteronômio 23,25). A Tradição oral determinava minuciosamente o que podia e não podia ser feito aos sábados. Havia até uma lista de 39 verbos (trabalhos) que não podiam ser feitos naquele dia. Quatro destes verbos (colher, debulhar, limpar e preparar) eram descrições de que os discípulos estavam fazendo ao comer.
Jesus combateu a tradição judaica muitas vezes, especialmente as tradições com respeito ao sétimo dia. Há uma grande quantidade de situações nas quais Jesus entrou em choque com os judeus nesta questão (Mc 3,1-6; Lc 13,10-17; 14,1-6; Jo 5,1-9; 16-17; 7,22; 9,1-14). A seita dos chamados essênios, por exemplo, proibia claramente que um homem tirasse de uma cisterna ou fosso um animal que ali tivesse caído (Documento de Damasco, 11.13-14). Jesus, e até mesmo a maioria dos judeus, achava isto um absurdo (Mt 12,11; Lc 14,5, também 13,15).
O Mestre citou o exemplo de Davi em 1Sm 21,1-6 para chamar a atenção dos seus opositores ao fato que nem tudo pode ser resumido ou explicado pela tradição rabínica. Davi comeu os pães da proposição (Lv 24,5-9) numa situação de perigo de vida, mas não foi punido por isto. De fato, este evento ocorreu num sábado, dia no qual os pães eram retirados do tabernáculo, substituídos por outros e disponibilizados aos sacerdotes para seu alimento. Tal fato não prova que os pães da proposição podiam ser comidos por qualquer um; pelo contrário, a exceção prova a regra. Quebrar a lei de Deus, quando houver necessidade, não é o que Jesus ensina aqui. O que fica provado é que o modo rígido e legalista dos fariseus de interpretar a Lei não explicava tudo (Mc 2,25-26).
Realmente, Davi só comeu os pães da proposição impunemente por ter Deus concedido a ele esta prerrogativa naquele momento. De uma forma similar, Jesus tem prerrogativas e autoridade superior às da Tradição e da própria Lei judaica. Jesus está dizendo: “Se Davi teve autorização para quebrar o protocolo, muito mais o Senhor de Davi pode fazê-lo”.
Mateus ainda menciona o caso dos sacerdotes judaicos que trabalham no Templo em pleno sábado (Mt 12,5-7). Se o serviço no Templo exige a suspensão da lei do sábado para alguns, a obra de Jesus exige a suspensão da mesma lei, pois Jesus é maior que o Templo (Mt 12,6). Se o Templo era maior que o sábado e se Jesus era maior que o Templo, certamente era maior que o sábado, um dos grandes preceitos da Lei.
Em tudo isto, pode-se notar também que há prioridades dentro das prescrições da Lei e que há momentos em que um princípio maior supera outras regras menores. A citação de Os 6,6 aponta nesta direção. O ritual não é maior que a fidelidade; a Palavra do Cristo era maior que o ritual do sábado.
O provérbio “O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” é peculiar a Marcos, não sendo retomada por Mateus e Lucas. É difícil saber o motivo da omissão da frase nestes dois Evangelhos. O interesse pode ser simplesmente o de resumir Marcos, gerando espaço para introduzir outros materiais. Este é o costume de Mateus e Lucas. Outro motivo seria o de eliminar qualquer ambiguidade ou mau uso da frase nas comunidades receptoras das obras, embora seja muito questionável e difícil imaginar quais seriam estes maus usos do provérbio.
Mateus e Lucas, ao omitirem o provérbio que estamos estudando, colocaram toda a ênfase do episódio na frase: “O Filho do Homem é Senhor do sábado” (Mt 12,8 e Lc 6,5). Lucas, inclusive, por não mencionar (como faz Mateus) a questão do serviço do Templo, faz com que o leitor seja claramente induzido a entender a comparação que Jesus fez de si mesmo com Davi. Observe que Jesus, como Davi, era o ungido de Deus, que agia sob orientação divina e por causa disto tinha grande autoridade.
“O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” é uma clara alusão à criação. Jesus usa o verbo na chamada voz passiva (‘foi feito’) para designar a ação de Deus. O Senhor criou o homem no sexto dia e estabeleceu o sétimo como dia de repouso.
A própria ordem da criação indica que o homem era o alvo do benefício do repouso sabático. Contudo, o modo rabínico de interpretar afastava o mandamento das intenções originais de Deus. O sábado, que era para ser um dom, um presente e um dia de refrigério, acabou sendo um dia de castigo, de opressão e de tensão devido à grande carga de mandamentos associados com ele e dos inúmeros preceitos reguladores. Esqueceram a função do sábado e ficaram apenas com a sua forma externa.
Este método de recorrer às origens e à criação para resolver questões é característico de Jesus. Na questão do divórcio, narrada em Mc 10,2-12, enquanto todos buscavam alguma “interpretação” que permitisse o divórcio, Jesus buscava a intenção original do Criador na instituição do primeiro casal (Mc 12,6-9).
Jesus arremata a questão dizendo: “De sorte que o Filho do Homem é senhor também do sábado” (Mc 2,28). No Evangelho de Marcos esta frase aparece como conclusão do texto, mas apresenta uma verdade que é anterior à argumentação. De fato, o ensino que Jesus é o Senhor do sábado – e de tudo mais – permite que Ele diga como que o mandamento do sábado deve ser obedecido. A razão para aceitar o ensino de Jesus é o fato d’Ele ser o Filho do Homem. Seu ensino não tem validade apenas por sua lógica ou por sua veracidade, mas sobretudo por causa de sua autoridade.
O modo de Jesus interpretar a questão é importante, pois a norma é Ele mesmo. A era messiânica já havia começado, e o conhecimento de quem era o Messias traria compreensão para saber cumprir a vontade de Deus.
Somos chamados a abrir caminhos, rompendo as cercas ideológicas ou materiais armadas pelo sistema de poder, para que o pão seja farto na mesa de todos.
Padre Bantu Mendonça
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